domingo, 24 de junho de 2012

E aí, perdeu?

Ao apresentar dados que deixam claro a disparidade entre o número de lançamentos nacionais e o público atingido por eles, o cineasta e pesquisador Marcelo Ikeda questiona o modelo de distribuição que domina o mercado brasileiro e aponta para a necessidade de diversificar a cinematografia oferecida nas salas nacionais 



Hoje, o cinema brasileiro vive um incrível paradoxo: nunca antes produzimos tantos filmes (segundo a Ancine, em 2011, foram 99 longas brasileiros lançados) e nunca antes a maior parte desses filmes foi tão pouco vista. Olhando pela superfície, os dados podem enganar: a participação de mercado do filme brasileiro está entre 10% e 20%, percentual que, apesar de pequeno, é equivalente ao de países como a Alemanha e a Espanha. No entanto, são três ou quatro filmes que compõem a maior parte do público para o cinema brasileiro: filmes como Tropa de Elite 2, Se Eu Fosse Você 2, De Pernas Pro Ar, e outros poucos desses filmes com grande apelo como produto de consumo de massa. De outro lado, dos 99 filmes brasileiros lançados em 2011, 45 não atingiram um público mínimo de 5 mil espectadores. O que há de errado nisso? A culpa é dos filmes, que não têm qualidade? O buraco certamente é muito mais embaixo.

A velocidade dos fluxos de informação no capitalismo contemporâneo tem transformado a composição da indústria cinematográfica mundial, especialmente em relação à distribuição. O oligopólio global que domina o mercado cinematográfico mundial através de seis empresas (Fox, Warner, Paramount, Universal, Sony e Disney) promove lançamentos mundiais, que ficam cada vez menos tempo em cartaz. A rotatividade desses títulos estimula que esses lançamentos sejam cada vez maiores (um lançamento simultâneo no número máximo de salas num número máximo de países), concentrado nas salas de cinema de maior lucratividade (os multiplexes dos principais centros urbanos das capitais).

Esse modelo favorece os grandes lançamentos, que possuem um volumoso aporte de mídia. Isso cria enormes dificuldades para os chamados “filmes médios”, aqueles que tipicamente se sustentam pelo boca-a-boca positivo e pela longa manutenção em cartaz. Mas agora não há mais tempo para o boca-a-boca: se o filme não é bem sucedido no seu primeiro final de semana, ele será imediatamente substituído por outro. O tempo de “janela” é cada vez mais reduzido: os investimentos de marketing para o lançamento nos cinemas devem ser apropriados o mais rápido possível para o mercado de vídeo doméstico. Com isso, quando os pequenos exibidores finalmente conseguem cópias disponíveis, os filmes já estão nas locadoras de vídeo.

No Brasil, atingimos dados drásticos. Filmes como Rio ou Os Vingadores foram lançados simultaneamente em mais de mil salas por todo o país. Como o circuito exibidor brasileiro tem por volta de 2.300 salas, sendo que cerca de 1.800 salas compõem o chamado “circuito lançador”, é possível afirmar que um único filme chegou a ocupar mais de 50% de nosso mercado exibidor. Num multiplex como o UCI Iguatemi, composto de 12 salas, 6 delas exibiam o mesmo filme. Isso significa que a cada 10 minutos começava uma nova sessão desse filme. Como é possível falar então em “liberdade de escolha do espectador” se metade das salas de cinema do país exibem o mesmo filme, sustentado por um marketing global?

No Ceará, o cenário é ainda mais preocupante do que a média do País. Na semana passada, no dia 19 de junho, comemorou-se o Dia do Cinema Brasileiro. Mas parece que não havia o que se comemorar, pois nesse dia não havia um único filme brasileiro em cartaz, considerando todos os cinemas do Estado do Ceará!!!! A nova administração do cinema do Dragão do Mar, ligada a um empresário de um cinema de shopping, retirou os filmes brasileiros da programação. Em sua primeira semana de administração, programou Os Vingadores. Ou seja, um cinema de um centro cultural do Estado, que deveria ter uma programação diferenciada, acaba se voltando à mesma lógica de programação dos demais cinemas.

Outro exemplo drástico: os filmes dos cineastas cearenses não conseguem ser exibidos em sua própria cidade. Temos diversos filmes cearenses prontos, exibidos em importantes festivais de cinema no país e no mundo, mas que não obtiveram lançamento comercial. Entre eles estão Rânia, Homens com Cheiro de Flor, Num Lugar Errado, Patativa do Assaré, Os Últimos Cangaceiros, e alguns outros.

Há outro caso ainda mais grave: filmes cearenses que foram lançados nos cinemas do eixo Rio-São Paulo e em Recife, mas que não conseguem ser lançados em sua própria cidade. São eles: Mãe e Filha (Petrus Cariry) e Estrada Para Ythaca e Os Monstros (do coletivo Alumbramento).

Os shoppings possuem naturalmente uma lógica de funcionamento comercial, e não se quer mudar isso. Existem, no entanto, outros modelos de programação, outras possibilidades de trabalhar com os chamados “nichos de mercado”. No Rio, há exemplos de cinemas em áreas populares que vivem cheios, como o Ponto Cine (em Guadalupe) e o Nova Brasília (no Complexo do Alemão, inaugurado após a pacificação da comunidade). O BNDES e a Ancine acabaram de lançar uma nova linha de financiamento à construção de salas de cinema, o “Cinema Perto de Você”. Mas para isso, o Estado do Ceará ou as prefeituras precisam complementar os investimentos, com as Secretarias de Cultura e Educação. É preciso investir em formação de público, para, a longo prazo, reverter esse quadro.

Por que revertê-lo? Porque é importante que os brasileiros tenham acesso a filmes que pensem o seu País, porque a cultura nos faz refletir quem somos, e transforma os nossos modos de ser. Porque, antes de sermos trabalhadores e “votantes”, somos cidadãos. Ter acesso a filmes de diferentes origens é ter acesso a diferentes modos de pensar e de ser. Mostram que nem todos pensamos da mesma forma. É um caminho de cidadania, de aceitação das diferenças, de respeito ao outro. Essa é a força do cinema, como já o sabiam pessoas tão diferentes quanto Roosevelt, Eisenstein e Glauber Rocha!!! O circuito de exibição brasileiro precisa encontrar o seu público!

MARCELO IKEDA é cineasta e professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará. Mantém o blog www.cinecasulofilia.blogspot.com

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2012/06/23/noticiasjornalvidaearte,2863940/e-ai-perdeu.shtml

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