Iniciativas, apesar de pouco expressivas, já têm público fiel e lutam contra adversidades para não desaparecer
Raras são as vezes em que a explicação do dicionário para alguma palavra parece incompleta. Esse, porém, é o caso do vocábulo "cineclube", definido como "entidade onde se congregam amadores de cinema para estudar-lhe a técnica e a história".
A Vila das Artes é um dos locais onde cineclubistas se unem pelo cinema FOTO: ALEX COSTA
Embora correta, a descrição não contempla outros aspectos da prática. Para além do estudo da linguagem em si, o cineclube pode funcionar como ferramenta pedagógica em outros campos do saber, ou, num sentido mais amplo, servir de plataforma para suscitar reflexões sobre questões diversas - por exemplo, direitos humanos, saúde, arte, ativismo, meio ambiente, entre outras. Para além da construção de conhecimento, o cineclube passa ainda pela esfera da afetividade. Trocando em miúdos, significa gente que gosta de cinema reunida para assistir a filmes e conversar sobre eles - espécie de versão ampliada da roda de amigos em frente à TV.
Em Fortaleza (assim como em todo o Brasil, de modo geral), onde o preço de um ingresso para assistir a um filme no cinema pode chegar a R$ 18 (para 2D) e a programação das salas privilegia títulos estrangeiros, o cineclube também cumpre um papel democratizador - tanto no sentido do acesso à fruição quanto das oportunidades de exibição.
Pelo menos é essa uma das premissas do curso Pontos de Corte, oferecido pela Vila das Artes desde 2007, cujo objetivo é capacitar agentes culturais e exibidores independentes - ou seja, pessoas e grupos formados para selecionar filmes, planejar ações, cuidar de equipamentos de projeção, preparar programações e intervenções artísticas na cidade, de acordo com os contextos de cada local. Até sua última edição, no primeiro semestre deste ano, o Pontos de Corte já formou mais de 300 pessoas e incentivou a criação de vários coletivos. O conteúdo dos módulos inclui história e linguagem audiovisual, gestão e planejamento de ações culturais, técnicas de projeção, exibições temáticas, cineclubismo e antropologia cultural, entre outros assuntos.
Em um segundo momento, os alunos dividem-se em grupos para planejar e executar eventos públicos voltados principalmente à projeção de conteúdos audiovisuais. "No primeiro semestre de 2012 fizemos um mapeamento e identificamos 22 pontos de exibição derivados do Pontos de Cortes, que realizam ações em diversos locais, como praças e escolas", explica o coordenador da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes, Lenildo Gomes.
"O curso foi criado para atender a uma demanda de descentralizar não apenas o local de projeção (salas de cinema), mas a própria maneira de exibição (tela convencional). Assim, ao longo desses cinco anos já tivemos, por exemplo, projeções em dunas, na vela de uma jangada, em telas montadas na trave do gol de um campo de futebol e até dentro da Lagoa de Messejana", conta Lenildo.
Além de ampliar o acesso do público, não raro, pela sua própria natureza não comercial, os cineclubes acabam funcionando como janelas de circulação de produções independentes, quase nunca contempladas pelo circuito tradicional de exibição. "No Cineclube da Vila, por exemplo, muitas vezes priorizamos filmes de realizadores cearenses, inclusive alunos e ex-alunos da escola de audiovisual, porque é um tipo de produção hoje centralizada em festivais, mostras especiais e, em menor escala, na TV. As salas de cinema não costumam trabalhar com esses conteúdos, especialmente no caso dos curtas-metragens", justifica Lenildo.
Assim, para o coordenador, a atividade acaba funcionando como uma ação política, ao fugir do modelo estabelecido pelo mercado, em um modelo vantajoso tanto para o público quanto para realizadores. Outra proposta frequentemente adotada por organizadores de cineclubes é a de mostras temáticas, seja por gênero, diretor, assunto, estética ou outros aspectos. "Muitas vezes trabalhamos por tema no Cineclube da Vila, pelo fato de ele ter, entre outras características, um caráter de formação do olhar, da sensibilidade estética. Além disso, o recorte por tema também funciona como um atrativo, para as pessoas interessadas no assunto", esclarece Lenildo.
Plural
A última turma do Pontos de Corte foi finalizada em abril deste ano, mas já estão inclusas no planejamento da Vila novas edições do curso em 2013. "Provavelmente faremos remodelações no conteúdo. Temos percebido uma necessidade grande de diálogo da prática cineclubista com outras linguagens artísticas ou mesmo com novas possibilidades dentro do próprio cinema", adianta Lenildo. "Uma delas é o chamado ´live cinema´ (algo como cinema ao vivo), em que as imagens são montadas em tempo real, na hora da exibição, alterando a estrutura narrativa".
Um dos coletivos derivados do Pontos de Corte é o Provocações!, que realiza quinzenalmente o Cine Desbunde, cineclube que combina exibição de filme a outras atividades artísticas - como mostras de artes visuais, leituras poéticas e outras. Para completar a proposta descontraída, os encontros acontecem em um bar, o Buteco da Florzinha, no bairro do Benfica.
A iniciativa surgiu a partir de outras atividades dedicadas ao cinema, idealizadas pelo ex-aluno do Pontos de Cortes, Antonio Viana. "Antes do Cine Desbunde, tive a ideia de fazer o Cine Macumba, projeto voltado para a temática da cultura e da manifestações afro-brasileiras, com atividades envolvendo música, culinária e exibição de filme", recorda o produtor.
"Chamei algumas pessoas e realizamos três edições do Cine Macumba; uma na Associação Cultural Solidariedade e Arte - Solar e duas na Vila das Artes", complementa Viana. Já o Cine Desbunde é dedicado a filmes brasileiros, dentro da temática da juventude e dos movimentos culturais nacionais nos anos 1960 e 1970. "Trata-se de uma proposta experimental em um formato mais simples, mais básico. Improvisamos uma tela na parede do bar. Temos tido uma média de 20 espectadores, mas isso varia por conta da rotatividade propiciada pelo ambiente", explica Viana.
Antes das exibições, os organizadores costumam tocar algumas músicas; depois, sempre há uma conversa entre público e artistas locais convidados, "normalmente mais desconhecidos pelo público e não contemplados pelas políticas culturais públicas", esclarece o produtor.
Para Viana, a prática cineclubista é importante especialmente para a formação de plateia. "No caso do Cine Desbunde, ficamos surpresos com a falta de conhecimento da nossa juventude sobre a cultura brasileira musical de antes dos anos 1990, inclusive em um bairro onde isso não deveria acontecer, por se tratar de um polo universitário", critica o produtor. Por conta disso, uma das ideias dos realizadores do Cine Desbunde é formar uma biblioteca digital com os filmes e documentários exibidos no cineclube, "para ampliar o acesso às produções", complementa.
REPÓRTERADRIANA MARTINS
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/m/materia.asp?codigo=1194895
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